Projeto leva autonomia e qualidade de vida para pessoas com deficiência em suas casas
Território de Todos atende pessoas com deficiência intelectual com metodologia que envolve toda a família e fortalece rede socioassistencial
(Por Ingrid Vogl)
Até pouco tempo, Diogo João Barbosa, 29 anos, acordava todos os dias às 16h, ajudava em uma ou outra tarefa de casa e esperava o horário das novelas para emendar uma na outra. A rotina quase sem tarefas e estímulos, limitada aos portões de casa, começou a mudar quando Diogo começou a participar do projeto Território de Todos, iniciativa da Fundação FEAC em parceria com a Fundação Síndrome de Down, que acompanha e atende pessoas com deficiência intelectual no domicílio e em seu território no município de Campinas, contribuindo para a inclusão social e a apropriação dos equipamento em sua comunidade.
“Antes era muito caseiro, só ficava em casa e não saia para canto nenhum. Falaram para minha mãe que tinha um projeto muito bom no bairro e que eu poderia participar, porque era para pessoas que só ficavam em casa, como eu. No começo, fiquei com um pé atrás. Se eu não gostasse, não iria participar. Comecei a frequentar o grupo, gostei e fiquei. Participando do projeto foi que descobri meu bairro. Moro há tanto tempo aqui e não conhecia praças, parques, instituições e outros lugares. Foi assim que me convenci que esse projeto ia ser bom pra mim”, contou Diogo, que foi a primeira pessoa atendida pelo Território de Todos.
A princípio quieto e tímido, Diogo logo se soltou e falou com gosto de suas recentes conquistas e descobertas. “Tem tantos lugares bonitos por aqui, o Parque Luciano do Valle é um deles. O que mais gostei foi de fazer amizades, porque antes eu não tinha amigos. Sempre fazemos algo juntos, vamos passear pelos parques, fazer piqueniques. Vou ao shopping sozinho e gosto de ir com minhas paqueras”, disse, sem cerimônias.
Com sua independência e autonomia, Diogo já começa a entrar em um processo de, aos poucos, se desligar do projeto. “Melhorei 100% e este projeto foi muito bom pra mim, e eu sinto que melhoro cada dia mais”, contou. Em agradecimento à equipe do Território, ele pretende dar uma festa assim que puder.
Amizades sinceras
Uma das descobertas de Diogo, foi que vários dos amigos que fez por meio do projeto moram perto da casa dele, como o Jean Vitor Perdigoto, 19 anos, que chegou no meio de nossa conversa e deu um abraço fraterno no amigo.
Sem tirar o sorriso do rosto pela chegada do amigo, Diogo conta mais uma curiosidade sobre a amizade deles. “O Jean sempre vai até minha casa e me chama pra jogar bola. Assim me sinto bem, querido e acolhido nesse lugar, com essas pessoas. Agora vou para onde eu quiser, porque me encontrei aqui”, falou.
Quando pergunto a Jean o que mudou fazendo parte do Território de Todos, a resposta é curta e ampla: “tudo”. O jovem que gosta de ajudar na reforma da casa e como o pai quer ser caminhoneiro, frequenta todos os dias o Centro Comunitário do Jardim Santa Lúcia, onde o projeto é desenvolvido. “Gosto daqui e participo de tudo que me faz bem: informática, handebol e jogar bola com os amigos. Também dou meus rolês pelo bairro e sempre paro para tomar o refrigerante que adoro”, contou. Encaminhado pelo projeto, Jean pensa no futuro e planeja iniciar um curso de preparação para o mercado de trabalho na Fundação SIT – Serviço de Iniciação ao Trabalho.
Qualidade de vida
Se para Jean tudo mudou a partir do momento que começou a participar do projeto, para sua família aconteceu o mesmo. A mãe do jovem, Maria Iléris Pereira da Silva, conta que as mudanças impactaram principalmente em qualidade de vida para ela, o marido e os três filhos, incluindo Jean.
“Antes de participar, ele não tinha atividades, não se interessava e nem tinha preocupação com nada. Só queria ficar comigo e era totalmente dependente de mim. Hoje ele já faz as coisas sozinho, sai pelo bairro, vai para o Centro Comunitário¹ todos os dias sozinho e está mais independente. Ele também melhorou muito em suas atitudes, no jeito de agir e isso fez com que a relação com toda a família melhorasse. Ele já participou de atividades de outras instituições, mas nunca quis continuar, mas agora ele se achou”, relatou a mãe emocionada.
Com a maior autonomia de Jean, veio também mais tempo para Iléris cuidar de si mesma e da família. “Agora consigo fazer minhas atividades, ir ao mercado com tranquilidade e melhorei muito, porque andava nervosa e agitada. A partir do momento que a equipe do Território começou a frequentar minha casa, a nossa vida melhorou, porque eles cuidam e orientam não só meu filho, mas toda minha família. Temos um vínculo muito forte”, disse.
Metodologia em domicílio
As visitas à casa de Jean e a de todos os participantes do Território de Todos é o grande diferencial deste projeto. Para Marina Moretto, coordenadora do Território de Todos, a metodologia que estuda caso a caso, com atendimentos individualizados, é o que traz resultados tão positivos.
¹ Centro Comunitário é o Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos da OSC Centro Comunitário do Jardim Santa Lúcia.
“Olhamos caso a caso com empatia e a partir daí pensamos em situações específicas para cada pessoa, para dar suporte para que ela se enxergue como um indivíduo que tem afeto, desejos e possibilidades. Isso muda tudo”, contou Marina.
A equipe multidisciplinar do projeto possui oito profissionais, sendo cinco educadores sociais que fazem o atendimento domiciliar, um psicólogo, um assistente social e a coordenadora. A iniciativa atua desde maio de 2018, a princípio com 30 pessoas e focada na região Sudoeste; e atendendo pontualmente a usuários de outras regiões, conforme demanda espontânea. A partir de 2019, o projeto foi ampliado para as demais regiões de Campinas. A meta é que até o início do próximo ano, o atendimento chegue a 100 pessoas.
Segundo Regiane Fayan, líder do programa Mobilização pela Autonomia, do qual o Território de Todos faz parte, no final de 2017 a Fundação FEAC, a partir da mudança de escopo para atuação por meio de investimentos sociais em projetos, propôs à Fundação Síndrome de Down parceria para execução de uma iniciativa que atendesse às pessoas com deficiência intelectual em domicílio. “Essa proposta veio ao encontro de análises e estudos da própria FEAC, concomitante a entrega do Diagnóstico Socioterritorial da população assistida pela Fundação Síndrome de Down, sobre qual é o alcance do uso do território para pessoas com deficiência atendidas pela instituição”, afirmou.
Foram feitas pesquisas em equipamentos da rede, como Centros de Saúde (CS), Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) e Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREA) para identificar as famílias que tinham pessoas com deficiência em seus núcleos e que estavam em casa. A equipe encontrou famílias desgastadas, em situação de vulnerabilidade social e violências de vários tipos, além de violação de direitos. “Conforme nós fomos conhecendo a rede socioassistencial e ela foi entendendo melhor projeto, definimos metodologias de trabalho e testamos o que dava certo ou não”, explicou Marina.
Encaminhados pelo CS, a equipe vai até a casa do potencial participante do projeto para constatar se a pessoa faz parte do público alvo do Território de Todos e convida a família para fazer parte do projeto. Na visita seguinte, o educador social leva materiais lúdicos para desenvolver atividades com o usuário.
“Os primeiros contatos são para vincular a pessoa ao projeto, identificar quais são as demandas, desejos, se tem violação de direitos. O educador passa a ir em geral uma vez por semana na casa, por uma hora. Isso é flexível e depende muito da situação da pessoa atendida. As atividades vão sendo desenvolvidas e muitas vezes, eles querem apenas dar uma volta pelo bairro. Às vezes isso acaba sendo mais lúdico e terapêutico do que as atividades planejadas, porque essas pessoas ficam muito dentro de casa”, disse a coordenadora.
Visitas acolhedoras
Dessa forma, a equipe do projeto entra na intimidade das famílias. Se por um lado a família acolhe o educador e sente segurança no trabalho desenvolvido, por outro há uma carga ao entrar nos lares com tudo o que isso significa, já que a família acaba depositando esperanças e angústias no trabalho desenvolvido.
O objetivo principal é fazer encaminhamentos para que as pessoas passem a usar os equipamentos da rede (Centros de Saúde, escolas, instituições sociais etc), e a partir daí frequentar e se apropriar de seus territórios. A ideia é que depois de um tempo de atendimento, os participantes entrem em um processo de desligamento, pois começam a se tornar independentes e se tornam capazes de atuar como sujeitos autônomos. Esse processo pode levar desde alguns meses, até mais de um ano, dependendo de cada caso.
“A gente tenta enxergar a demanda da pessoa e da família e as dificuldades que existem em cuidar por tanto tempo dessas pessoas com deficiência. São dificuldades sociais, de recursos, estudo, trabalho. Também existe preconceito envolvido. Essas pessoas têm garra para lutar pela vida com o mínimo. Nossa tentativa sobretudo é de olhar para toda a escassez, e a partir disso preparar atividades que façam com que as pessoas com deficiência e suas famílias vejam possibilidades de vida nelas. Deixamos em evidência para as famílias que os atendidos têm capacidades e são capazes. E para a família, valorizamos o quanto são fortes”, evidenciou Marina.
Consciência em rede
Para Douglas Henrique da Silva, educador social do projeto, o maior desafio é ver na pessoa com deficiência suas potencialidades, e em contrapartida, as limitações que estão em situações de seu cotidiano: às vezes na família, na escola ou em outros ambientes. “Não adianta a pessoa ter deficiência, mas seu entorno não estar pronto para lidar com a autonomia dessa pessoa. Por isso, nossa principal ferramenta de trabalho é ter interface com a rede de atendimento. Quando o trabalho é em rede, as condições melhoram muito”, analisou.
Segundo Douglas, que vai até a casa dos participantes do projeto fazer os atendimentos, a principal transformação que ele observa é a capacidade dos atendidos em intermediar e resolver os próprios conflitos e ir em busca de sua autonomia, como a busca por um trabalho, por exemplo. “Cada conquista significa muito, inclusive para a família. Mesmo nos casos mais graves, a expressão de um sorriso, a ida até o portão para dar uma volta com o educador, ver a pessoa circulando sozinha pelo bairro. Essa evolução é essencial”, afirmou.
Território de Todos
O Território de Todos é uma iniciativa do Programa Mobilização para Autonomia (MOB), iniciativa da Fundação FEAC que investe em soluções com o objetivo de assegurar a inclusão efetiva das pessoas com deficiência. Se dedica a romper barreiras para que as pessoas com deficiência possam participar da sociedade e exercer plenamente seus direitos.
Para criar o Território de Todos, as Fundações FEAC e Síndrome de Down se basearam em um serviço tipificado pela política nacional de assistência social que não é implantado em Campinas, o Serviço de Proteção Social Básica Para Pessoas Com Deficiência e Idosos No Domicílio. A inspiração para a iniciativa veio de Belo Horizonte (MG), que executa o serviço.
Saiba mais: https://www.feac.org.br/mobilizacaoparaautonomia/
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